Foi no início de 2015 que Annabelle Gourlay, da University College de Londres, e seus colegas, recrutaram 21 homossexuais recentemente diagnosticados com HIV e que adquiriram o vírus apenas algumas semanas antes do diagnóstico. O objetivo era aprender sobre fatores sociais e ambientais que envolviam a vida dos participantes no momento da infeção pelo vírus. O estudo foi conduzido em Londres e Brighton, na Inglaterra, ao longo de 2015, e publicado no BMJ Open em 1º de agosto de 2017.
Os pesquisadores selecionaram apenas homens recentemente infectados, por pressupor que estes poderiam se lembrar do momento em que adquiriram o HIV com mais precisão do que os homens que adquiriram o HIV há mais tempo. Os participantes tinham entre 22 e 61 anos de idade e eram em sua maioria brancos, bem educados e empregados. Mais ou menos seis meses depois da data de infecção, os participantes foram entrevistados pelos pesquisadores, com perguntas que incluíam antecedentes pessoais, mudança de residência entre Londres e Brighton (e, se aplicável, as experiências desta transição), a vida nos últimos anos antes do diagnóstico, relações sexuais e a percepção do HIV no momento da sua infecção.

Muitos entrevistados descreveram experiências difíceis durante a infância, que impactaram a saúde mental e o uso de drogas por bastante tempo. Muitos relataram ter sofrido intimidação por colegas na escola, ter tido relações disfuncionais ou superficiais com seus pais, membros da família com problemas de saúde mental ou que abusavam do álcool.
“Eu preciso de validação das pessoas e isso se manifesta em um contexto sexual”
“Meu pai era alcoólatra e costumava bater na minha mãe e em mim”, contou um homem. “Isso pode ter um impacto sobre o quão destrutivo a pessoa se torna. O fato de eu nunca ter recebido amor incondicional é algo com o qual luto na minha idade adulta.” Outro homem disse que nunca “se sentiu nutrido” por seus pais e explicou: “Eu sempre preciso de validação das pessoas e isso se manifesta em um contexto sexual.”
Alguns homens cresceram em ambientes onde homens gays eram altamente estigmatizados, o que poderia resultar em sexualidade reprimida ou baixa autoestima. Embora a maioria dos participantes tenha se assumido gay quando adolescentes ou jovens adultos, outros apenas assumiram sua orientação sexual em seus vinte ou trinta anos de idade. Em alguns casos, isso foi associado ao ressentimento de ter perdido oportunidades e a um desejo de explorar mais a sexualidade. “Crescer em um ambiente que leva você a se conhecer muito tarde faz pensar em experiências e assuntos sexuais que talvez você não precisasse mais pensar. Só pensa porque está um pouco atrasado. Entende?”, disse um dos entrevistados.
Eventos traumáticos experimentados logo antes do diagnóstico do HIV causaram problemas psicológicos em muitos participantes. Isso incluiu doenças graves ou morte de parentes, rupturas de relacionamento, parceiros violentos, perda de amizades e problemas de saúde. Vários homens foram expostos a múltiplos fatores de risco psicossociais — uma combinação que, segundo o Aidsmap, pode ser devastadora. Um dos participantes relatou: “Eu estava sobrecarregado. Não vivia em um lugar estável, não estava em um relacionamento estável, não tinha estabilidade financeira e ainda sofri perdas bastante graves em relação à minha família.”
“As drogas me pegaram. Foi uma fuga e, naquele momento foi… agradável”
Outros homens experimentaram uma crise de meia-idade. “Provavelmente foi a tempestade perfeita. As drogas me pegaram. Era meados dos meus quarenta anos e eu não me sentia tão seguro. Havia alguns problemas e eu estava procurando diversão: foi uma fuga e, naquele momento foi… agradável.”
Por fim, alguns dos participantes reavaliaram o possível preço que pode vir do sexo sem proteção. “Eu não valorizei minha vida. Tantas coisas aconteceram nos últimos três, quatro e cinco anos… Rompimentos, perder tudo, questões emocionais, mortes e Deus sabe o que mais… Parece que chega uma hora que surge a questão: ‘toda a minha vida foi uma merda, então, qual é o ponto? Acha que eu realmente me importava se ia contrair HIV?'”
“Há muita tentação diante dos jovens nos dias de hoje”
Londres e Brighton atraíram muitos destes homens por causa de sua cultura aberta, livre e pelas oportunidades sociais. Quase todos conheciam parceiros em saunas, clubes ou festas envolvendo drogas e sexo grupal. As tentações da cena gay podem ser difíceis de resistir. Um deles contou: “Você vai para Vauxhall [distrito gay no sul de Londres] em uma noite de sexta-feira e não volta para casa cinco dias depois. Eu acho que há muita tentação diante dos jovens nos dias de hoje. E eu me incluo nisso.”
Aplicativos de namoro proporcionaram acesso conveniente a múltiplos parceiros sexuais para muitos participantes, independentemente da idade. Eles também podem apresentar aos seus usuários as festas de sexo grupal e ao sexo com uso de drogas. Alguns entrevistados disseram que os aplicativos promoviam promiscuidade e irresponsabilidade. Vários homens observaram mudanças na cultura do sexo e no uso de drogas na cena gay. “As drogas mudaram. Há mais escolhas: GHB, mefedrona… Eu ficava bastante assustado no início. Mas, como isto é algo normalizado na cena gay, você simplesmente tenta fazer o que outras pessoas fazem. O mesmo vale para a injetar. Hoje em dia não é tão assustador.”
Os entrevistados, especialmente homens de meia idade e mais velhos, descreveram uma preocupação decrescente com o HIV na comunidade gay. “Eu acho que em Londres quase se chegou ao ponto em que as pessoas não estão mais preocupadas com isso. Não é encarado como uma sentença de morte. Lembro-me de ler um artigo de um médico, que muitas pessoas gays devem ter lido, em que ele diz preferir ter HIV do que diabetes.”
“Mesmo que o pior aconteça, hoje ele não é mais o pior”
Graças à disponibilidade de tratamento efetivo contra o HIV e bons cuidados médicos, o HIV foi amplamente percebido como uma condição gerenciável. Segundo o Aidsmap, Isso afetou normas e atitudes comportamentais ao risco. “Agora, todo mundo conhece alguém positivo e sabe que eles são aptos e saudáveis se tomam algumas pílulas por dia. Esse é um fator importante que explica porque poucas pessoas ainda usam camisinha. Porque se tornou uma doença tratável. Eu acho que isso mudou todos cálculos de risco: mesmo que o pior aconteça, hoje ele não é mais o pior.”
Alguns dos participantes mais jovens fizeram a escolha consciente de fazer sexo sem preservativo, incluindo sexo com parceiros soropositivos com carga viral indetectável. Vários usaram profilaxia pós-exposição (PEP) e alguns tentaram, sem sucesso, obter profilaxia pré-exposição (PrEP) em sua clínica de saúde na Inglaterra. Muitos entrevistados relataram uma sensação de apatia diante dos riscos e da susceptibilidade ao HIV na comunidade gay. Eles atribuíram isso à disponibilidade de tratamento contra o HIV e às novas opções de prevenção, à crescente compreensão sobre o que é a carga viral indetectável, ao declínio do estigma e às mudanças na percepção do HIV.
Alguns entrevistados justificaram a sua infecção com um único fator, mas a maioria dos participantes disse que uma combinação de fatores contribuiu para seu comportamentos de risco e, consequentemente, para a infecção pelo HIV. “O sexo, as drogas e os aplicativos de namoro se entrelaçaram simultaneamente. Não posso realmente dizer qual deles é a causa.”
“Você ouve falar de tantos jovens gays que, através deste estilo de vida, agora são soropositivos”
Os pesquisadores observam que muitas vezes houve uma interação entre fatores individuais, comunitários e estruturais. Por exemplo: um homem em seus vinte anos sentiu que seus comportamentos sexuais auto-prejudiciais vinham desde a infância e do relacionamento violento com sua mãe, mas também destacou o papel do ambiente “abusivo”, incluindo as saunas gay. “O aumento do sexo de risco, do sexo com drogas, está se tornando uma epidemia, na minha opinião”, disse ele. “Você ouve falar de tantos jovens gays que, através deste estilo de vida, agora são soropositivos. É muito hedonista, realmente desagradável.”
“Já que não me importava em correr riscos, desisti”
Questões psicológicas e o uso de drogas foram frequentemente mencionadas juntas. Por exemplo: um homem de quarenta e poucos anos identificou os fatores importantes em sua infecção pelo HIV como: “As drogas. Mas também a depressão, porque, já que não me importava em correr riscos, desisti.”
Alguns participantes que tiveram eventos estressantes disseram que a mudança na percepção do HIV, conscientemente ou inconscientemente, influenciou seu comportamento. Suas decisões de risco-benefício foram alteradas. “Quando éramos jovens, o medo de Deus era colocado em nós. Se você contrair, morre! Agora, é gerenciável. Você pode viver uma vida normal. Cheguei à conclusão que, se eu fosse soropositivo, isto não teria um grande impacto na minha vida.”
“A infecção pelo HIV adquirida recentemente entre os homens que fazem sexo com homens reflete uma rede complexa de fatores que operam em diferentes níveis”, concluem os pesquisadores:
- Individual e interpessoal — por exemplo, relações familiares difíceis e eventos estressantes recentes.
- Comunidade — um ambiente que normaliza atitudes de risco e a percepção comunitária da vida com o HIV.
- Estrutural — a disponibilidade de tratamento contra o HIV e a disponibilidade de drogas recreativas.
A importância relativa dos fatores em cada nível variou para cada pessoa. Os pesquisadores dão três exemplos, mostrando como, para cada pessoa, diferentes fatores interagiram entre si e contribuíram para a infecção pelo HIV. Neste gráfico, A, B e C representa um entrevistado diferente.
“As circunstâncias que envolvem a aquisição do HIV são complexas e, por isso, exigem intervenções em vários níveis que abordem fatores de risco individuais, interpessoais, psicossociais, comunitários e de nível estrutural”, dizem os pesquisadores. Eles dizem que as intervenções podem incluir:
- Melhores avaliações clínicas para identificar jovens homossexuais soronegativos que precisam de mais apoio e suporte psicossocial específico.
- Atividades de divulgação para levar homens isolados socialmente a receber apoio.
- Educação comunitária sobre sexo com drogas.
- Treinamento para ajudar os profissionais de saúde a conversar com homens gays sobre sexo com drogas e comportamento de risco.
- Intervenções e aconselhamento dentro de aplicativos de namoro.
- Programas de conscientização sobre as implicações sociais e psicológicas de um diagnóstico de HIV.
- Acesso à PrEP.
Uma das possíveis limitações desse estudo, reconhecem os próprios autores, é que as experiências de homossexuais brancos em grandes centros urbanos podem não ser generalizáveis aos homens de outros grupos étnicos e áreas geográficas. Outra limitação é que as respostas podem ter sido limitadas pelo viés de desejabilidade social, uma tendência de responder às perguntas de forma com que as respostas sejam vistas favoravelmente pelos outros.
***
Há ainda uma limitação natural de um estudo qualitativo como este. Eu diria que a amostra de participantes, composta por apenas 21 homens, é muito pequena para quaisquer conclusões generalistas, mesmo para homossexuais brancos habitantes de grandes centros urbanos. Para conclusões mais amplas, é preciso aguardar um estudo similar quantitativo. Afinal, dentre estes 21 participantes, praticamente todos parecem associar o HIV a algum remorso em suas vidas — num estudo mais abrangente, será que teríamos estas mesmas constatações? Será que o HIV é uma condição de saúde exclusiva daqueles que carregam traumas e remorsos? É verdade que a percepção de que o HIV foi adquirido em um momento conturbado da vida não é incomum entre muitos soropositivos — mas será que este período na vida de cada um teria tanto peso, motivo de culpa e vergonha, se o HIV sempre tivesse sido cronicamente tratável, tal como é hoje, sem nunca ter sido uma sentença de morte e envolto em tanto estigma? Enfim, se esse vírus não tivesse (tido) esse impacto (que teve), será que o comportamento que nos levou à infecção teria o mesmo significado?
Podemos imaginar as alternativas à vontade, mas não podemos negar que o HIV foi de fato uma sentença de morte para praticamente todos seus infectados nos primeiros anos da epidemia — e ainda o é para os milhares que não têm acesso ao tratamento antirretroviral. Da mesma forma, o estigma contra soropositivos, bem como contra as minorias abaladas pelo vírus, existe. Não é ousadia minimizar quaisquer traumas, diante de uma doença com uma história tão terrível como a aids? Por outro lado, como indivíduos vivendo com HIV, na medida em que este vírus deixa de ser o que era, será que não podemos reescrever a percepção destes traumas, para o nosso próprio bem estar? Me lembro de uma frase do poeta T. S. Eliot, impressa há alguns anos na parede de uma exposição no SESC Pompéia, em São Paulo:
“Que não só o passado determina o presente, mas que o inverso também ocorre.”
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