Pensar e escrever algo útil em relação ao HIV é, sem exceção, enfrentar uma multiplicidade de questões e problemas. São tantos que não consigo enumerá-los sem ser omisso. Posso exemplificar alguns, os mais comuns, mas nem sempre os mais importantes para você, que ora me lê. Estigma, homossexualidade, história trágica que a doença imprimiu na humanidade, imagens de pessoas como cadáveres adiados, tratamento com muitos remédios diários, efeitos colaterais, expectativa de vida após o diagnóstico, etc.
Nenhuma dessas questões me interessa, isoladamente, nesse texto. Em outros, possivelmente. Vou me dar o direito de, nessa oportunidade, não abordar o HIV do ponto de vista histórico; de não falar dos países que ainda são assolados pela falta de medicamentos; de não falar daqueles casos de resistência viral pela irregular adesão ao tratamento, etc. Vou pular tudo. Apenas nesse texto. Aqui, vou propor um outro exercício mental. Quero recortar o HIV do espaço e do tempo. Quero que você olhe para o vírus, exclusivamente hoje, enquanto seus olhos passam essas linhas, descontextualizando ele de toda sua carregada história pregressa. Vamos olhar sem (pre)conceitos, sem história evolutiva, sem análise da evolução medicamentosa, sem estigma, sem nada. Ele só. O vírus isolado de seu contexto.
Fui diagnosticado há poucos meses. Não mais do que três. A situação não foi das mais fáceis. Mas qual seria? Vou lhe poupar dos detalhes, nesse texto, mas lhe garanto que ocorreu com todos os requintes e detalhes que permitiriam uma grande dramatização. Com todos os motivos que justificariam uma vitimização eterna e um sem número de lamúrias contra a vida e contra Deus.
Mas… será mesmo uma grande desgraça? Desde o dia do diagnóstico, como é de se esperar, estudei muito sobre o tema. Muito. Até cansar. Agora, estudo cansado mesmo, mas estudo. Sim, é uma necessidade conhecer o que ocorre, para não acabar como na idade média, em que um raio era símbolo de uma vingança divina. Afinal, ninguém tinha no horizonte a possível explicação para o fenômeno. Era um mito, um milagre, uma manifestação ou vingança divina. Era. Sem conhecimento, tendemos a mistificar as coisas (caminho que eu respeito, mas não se aplica à minha interpretação particular sobre a infecção).
Textos em inglês são sempre os mais completos, pois é possível pesquisar países que lideram os estudos científicos atuais sobre a “enfermidade”, como Inglaterra, Estados Unidos e Austrália — embora esse último seja menos adiantado do que a França e Espanha. Aliás, aqui cabe um parêntesis. Durante os estudos, percebi que, na internet, tem muito lixo sobre o assunto. Muito lixo, mesmo. A começar pelas matérias desatualizadas. Assim, se me permite uma sugestão fundamental, selecione no Google o último ano ou o último mês nas ferramentas de pesquisa. Esqueça o resto! Não leia. Artigos de 2016 ou início de 2017 já não mantém qualquer ligação com a atualidade da ciência sobre do tema. Assim, você já conseguirá se livrar de bastante bobagem.
Voltando. Hoje, o que proponho é recortar o HIV do espaço e do tempo. Não vamos olhar sua história trágica, suas vítimas, seus estigmas. Não quero enaltecer sua importância, a partir do seu número tétrico ou da trágica história que cerca essa infecção. Ao contrário. Na análise de hoje, mais consciente e racional do que propriamente humanista, quero olhar para o HIV hoje, agora. Apenas ele. E, nessa tarefa, não posso chegar à conclusão de que ele é uma desgraça. Longe de mim desejá-lo ou subestimar sua gravidade. Não é isso. A questão é que, hoje, o HIV não pode mais ser interpretado pelas pessoas como uma ameaça insuperável, algo absolutamente terrível, uma catástrofe na vida, o fim. Nada disso hoje retrata o HIV de hoje. Aliás, presentificar a trágica história do vírus para mostrar sua importância só colabora com a manutenção do estigma. Daí a proposta desse texto. Recorte o seu HIV e olhe para ele e para você, a sós.
Eu tomo duas pílulas, uma vez por dia. Claro, poderia ser apenas uma pílula se não houvesse a mesquinha, porém inafastável, questão das patentes da indústria farmacêutica. Mas, ainda assim, seriam três compostos em uma pílula — portanto, uma questão apenas estética, uma aparente melhoria. No fim das contas, são dois comprimidos. Não são onze. Não são oito. Não são cinco. Também não estou dizendo que quem toma onze, oito ou cinco está perdido e é o fim. Não. Estou apenas recortando o HIV de sua história para olhar para ele hoje, agora. A própria expressão coquetel perdeu sentido, uma vez que, na minha opinião, só recarrega o estigma. Afinal, só quem trata o HIV toma coquetel, ainda que centenas de outras enfermidades crônicas demandem mais comprimidos diários. Coquetel de uma pílula? De duas? Não me parece adequado e não gosto da nomenclatura; cheira mal, me projeta para o passado, para o ultrapassado.
Ingiro as duas pílulas, com ou sem comida, à noite, antes de dormir, uma vez por dia. Não tenho qualquer efeito colateral. E todas as medicações atuais são assim. Só casos raros terão efeitos colaterais. E, ainda assim, serão passageiros, temporários, durando duas a três semanas. Sim, eu já as tive; mas nada demais. Nada. Uma leve dor de cabeça que não se apresenta mais e que ocorreu eventualmente. Nada que se comparasse à dor de cabeça que já tive inúmeras vezes por excessos durante uma noite de vinho ou cerveja, situação corriqueira antes do diagnóstico.
Em trinta dias após o início dos medicamentos, fiquei indetectável. Trinta dias. Ou seja, em trinta dias deixei de ter o vírus circulando no sangue, deixei transmitir o vírus, passei a impedir o comprometimento de minha saúde, iniciei a recuperação de minha defesa (de 323 células T-CD4 fui para 516). E olha que, pelos meus médicos, nos quais tenho grande confiança, sou um progressor rápido, pois não tenho a infecção há mais de 3 anos (desde meu último exame negativo) e já estava com uma carga relativamente baixa de T-CD4. Mas vamos adiante. O ponto não é esse.
A questão é que, hoje, ainda que a sua situação seja completamente diferente da minha, cabe ao indivíduo decidir se sua vida será um martírio ou se o HIV será apenas uma pequena parte de sua existência, mas não o todo. Apenas um vírus ou uma vida inteira, que tem infinitas possibilidades e é oceanicamente maior e mais ampla. Cabe a você, e a mim, a decisão de aderir ao tratamento, manter-se ou manter-nos com o vírus suprimido, mudar um pouco da sua atitude em relação a saúde. Ou não. Todavia, reconheço, toda vez que a escolha é dada ao ser humano, há grande pavor. Afinal, a liberdade é, também, amedrontadora. Dá medo ser livre. Ter a escolha é ter a responsabilidade, e isso dá medo.
Quero dizer que o HIV já foi visto também como uma doença do comportamento. Nesse contexto, como posso ficar de bem com a vida, diante de comportamento que é reprovado por todos? (Estigma, preconceito e culpa). Como posso ficar de bem com a vida diante de uma infecção que já foi, no passado, tão grave e tão carregada de preconceito? A culpa, aqui, é inimiga da liberdade e, claro, aprisiona. A pessoa não consegue superar a situação de se culpar e se reconciliar com a vida, porque, apesar de ser livre e ter essa opção, não consegue exercê-la, não supera o autopreconceito e entra no círculo de se auto acusar, julgar e condenar, terminando presa, mentalmente.
Porém, cientificamente analisando, hoje você pode olhar para o HIV com a liberdade de quem está de bem com a vida, pleno e completo. É, amigo, você pode escolher — isso não dá medo?! O amigo poderia me interromper, aqui, com a questão: “mas os remédios, a longo prazo, poderão lhe causar um problema cardíaco, no fígado, nos rins, nos ossos?” Ao que eu me curvo, assentindo, mas observo com as seguintes questões: e naquelas milhões de pessoas que tem hipertensão? E naquelas milhões de pessoas estão acima do peso? E naqueles que estão abaixo do peso? E naqueles que vivem em grandes centros, com poluição diária sendo inalada? E naqueles que estão no campo, entupindo-se de sementes transgênicas? Ou seja, meu amigo, o futuro não é previsível nem para mim nem para ninguém. Nem para o atleta, nem para o sedentário.
Eu sei. O exercício de recortar o HIV pode não ser fácil para aquele que tem resistência viral, quiçá por já sofrer com a infecção desde a época em que a medicação era pesada e sem tanta eficácia. Mas tenho a certeza de que este, se conseguir recortar o seu HIV da história e olhar para ele com atualidade e raciocínio, também sentirá um alívio. Sim, um alívio: a grande parte do peso negativo que a visão do HIV carrega é devido ao olhar que se tinha, no passado, sobre a infecção. Deve-se a uma interpretação que, hoje, é intempestiva, anacrônica, fora da atualidade, passada, ultrapassada.
E digo mais. Se formos analisar o que está acontecendo hoje no universo da pesquisa científica, com avançados estudos clínicos, que apresentam ganhos reais inéditos, seja na posologia (com possibilidade de medicamentos semanais ou bimestrais), seja na cura (seja funcional, seja esterilizante) aí, então, a alívio é ainda maior. CRISPR, anticorpos monoclonais de amplo espectro, técnicas de reversão de latência exitosas, mecanismos epigenéticos, identificação de novas linhas medicamentosas, etc.
Porém, para ser fiel ao propósito inicial desse texto, o objetivo não é olhar para o futuro, ainda que iminente, muito próximo, e nem para o passado. Mas, sim, olhar para o presente. Recortar o HIV e o analisar o hoje. Sem passado e sem futuro, este como esperança. Tire os sapatos. Vamos pisar no chão da realidade. Vamos cuidar da adesão e deixar de lado os estigmas que advém da história, do passado, dos conceitos ultrapassados. Olhe para hoje. Adesão ótima é vida igual. Já temos isso. Aqui. Agora. Amigo, recorte o seu HIV do espaço e do tempo. Vai ser gratificante.
Um abraço.
AJ”
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